A vida é casada.
Com um moço à beira dos quarenta, barbudo e carrancudo.
Chama-se Destino.
Não é um casamento feliz, posso perceber.
Mas fico feliz em saber que todos nós temos amores impossíveis.
Até mesmo o astro rei.
Deus foi misericordioso ao lhe conceder o Eclipse, para que ele voltasse a reencontrar sua amada Lua.
Mas um raio não cai no mesmo lugar duas vezes, e eu sou a prova disso.
A Vida, ainda mais.
O amor da Vida, é seu total aposto.
Em número e grau.
Não sei como funciona a realeza das forças superiores, mas é bem óbvio e fácil de deduzir que este é o amor mais impossível de todos.
Talvez a Vida, amargurada como é, viva tramando junto ao Amor. Assim juntos colocam pessoas opostas no caminho uma da outra, na vaga esperança de que um dia alguém possa se sentir ao menos um terço de como ela se sente.
Eu a entendo.
Faria o mesmo se tivesse a chance.
Fico feliz por ter sido a causa do reencontro.
Deitada em meu leito, observo as duas forças descutirem ao meu respeito.
A Vida, em toda sua glória, seus cabelos brancos brilham como uma benção do próprio sol, seus olhos escuros em uma eterna ferida que nunca se fecha.
A falta que o seu amor faz.
Vejo seu rosto enrubescido em raiva, diz que ainda não é a minha hora. Que tem tudo arquitetado. ( Suponho que seja rabisco mal feitos no livro da Vida, considerando o quão perturbada a minha própria vida é. )
A Morte está impassível, com as mãos nos bolsos de seu manto, seus cabelos negros como um céu estrelado, seus olhos em um branco cintilante.
São conformados.
Se conformou e aceitou as consequências das coisas que não tem controle.
Como se apaixonar pelo mais belo dos seres.
E por ser seu total oposto, teve sua punição.
Seres divinos não devem embarcar em romances astrais.
Tudo conforme o que está escrito, cada qual com seu qual.
A Vida e o Destino.
A Morte e sua eterna solidão.
Faz algumas horas que às vejo discutir.
Pude fazer algumas suposições, e tomar minhas próprias conclusões.
A Morte diz que ela está apenas dificultando seu trabalho, que teria que me levar logo, e não havia nada que pudessem fazer.
Sua delicadeza ao escolher cada palavra dita, me faz acreditar que nem mesmo para ela aquele encontro era agradável.
É certo, minhas escolhas me levaram até ali.
Enchi a cara com tudo que encontrei, aceitei tudo o que me fora oferecido por não suportar ver o meu amor partir... Para os braços de um outro alguém.
Tentei inutilmente parar um casamento, apenas para ser arrastada porta-afora pelos seguranças, sem ter a chance de chegar nem ao menos perto do altar.
Eu era um fracasso.
Até mesmo em morrer.
Minha overdose foi quase letal.
Assim como eu quase consegui.
Quase.
A Vida se irritou, dizendo que eu fiz exatamente o qua a Morte deveria ter feito.
Eu tentei.
Com todas as minhas forças, eu tentei.
Mas não há como lutar contra forças sobrenaturais.
Eu pensava isso até então.
A Vida tem o olhar de uma criança, e as vezes age como.
A Morte, não brinca em serviço.
Tem a seriedade de quem sabe todas as perdas que teve, os péssimos trabalhos que teve que fazer.
É um trabalho difícil, eu reconheço.
Ouvi as enfermeiras comentarem sobre uma criança que se foi na noite passada.
Vítima de um câncer, a Morte lhe acolheu em seus braços após um Ceifeiro vir fazer seu serviço.
Ela apenas cuidava do restante.
Estranhei o fato de nenhum anjo da morte ter vindo me buscar, mas entendi logo depois.
A Vida se pôs em minha frente.
"Sabe o que eu acho? Vocês deveriam parar, não vão chegar a lugar algum assim."
Roubei a atenção, me olharam em surpresa.
Se perguntando o quanto ouvi da conversa.
Tudo.
"Você, moça, é uma filha da puta." Ainda se perguntavam se eu estava falando sozinha ou com elas, eu podia ver em suas expressões. "Acho que milhares de anos não lhe ajudaram nisso. O Tempo foi implacável com você, como é com todos nós, mortais. E como forma de vingança, você fode com a gente sempre que pode."
"Poetas..." A Vida suspirou. "Havia me esquecido disso."
"Percebo." A Morte acentiu, levantando sua foice.
"Pare ai mesmo onde está, benzinho. Você é bem bonita, mas não faz o meu tipo.
Estou a horas ouvindo a ladainha das duas, hora de ouvir a minha."
Elas permaneceram estupefatas.
"Você, Vida, está me usando. Não tem porra de propósito nenhum. Eu sou um pretexto, para que você a encontre.
A anos a Morte não desce à terra. Ela espera no portão, para isso ela tem seus soldados.
Os vi ir e vir pelos corredores nas vezes que acompanhei minha mãe no hospital.
São prepotentes. Vi um levar minha mãe consigo, sem acreditar que eu presenciava todo o processo... Mas não estamos aqui para falar disso.
Talvez eu seja apenas uma louca em seu leito de morte, mas estou aqui assistindo uma D.R de dois seres que vão além da minha limitada compreensão.
Vida, usou deste infortúnio para tentar matar a saudade que lhe consome. Após se cansar de ferrar com a vida dos outros.
E onde está o amor? Foi pra casa do caralho.
Mande lembranças àquele filho da puta, estou livre de suas amarras, prestes a partir.
Ele me jurou que seria condolente comigo, mas não o vejo fazendo isso.
Ele apenas também me usou para o reencontro de vocês.
Essa talvez seja a pior verdade, fomos nós três manipuladas.
Por um único cara.
Acabe logo com isso, Morte.
Mas me façam um favor, a mim e todos os outros mortais, procurem o verdadeiro culpado para que não estejam juntas agora.
Mas eu verdadeiramente acho que não há um culpado.
É de sua própria natureza.
Como polos apostos de um ímã, acabam se repelindo em algum momento.
Agora eu entendo.
É como eu já havia lido; alguns amores são feitos para existir, não para acontecer."
Fechei os olhos em derrota, estava cansada.
"Acabe logo com isso." Murmurei.
O silêncio se instaurou entre nós até que a Vida se pronunciou para a Morte.
"A garota dela está na recepção, a decisão é sua."
A porta bateu, e eu não me lembro de muita coisa depois disso.